segunda-feira, novembro 17

a ver navios


Longe vai o tempo em que "o povo" podia subir ao primeiro piso da Gare Marítima (de Alcântara ou da Rocha) para se chegar à extensa varanda voltada para o rio, de onde era possível admirar mais de perto os grandes navios de passageiros ali atracados e portanto, ver alguma coisa mais, para além de gruas e contentores.

Recordo-me de lá ter ido várias vezes, duas delas para embarcar num cruzeiro, e não me lembro de prestar muita atenção aos famosos Painéis do Mestre Almada. Como eu, acho que, naquele tempo, a maioria das pessoas não "passava cartão" ao trabalho do Mestre, patente nas paredes interiores das estações marítimas. Tal facto, não era sinónimo de ignorância ou desprezo pela arte, mas sim porque as pessoas se deslocavam às gares marítimas com um propósito bem definido, e não era apreciar as grandes "pinturas":

a gente ia lá assistir à chegada de passageiros conhecidos, ou figuras famosas, ou simplesmente admirar e de certo modo, participar na festa de serpentinas que eram lançadas lá de cima da amurada dos grandes navios de durante o soltar das amarras do cais,
ou a gente ia lá para dizer adeus, acenar, gritar, chorar de alegria ou tristeza, à chegada ou à partida de um viajante amigo ou familiar - hoje, só os mais velhos de nós, sabem como foram as partidas dos transatlânticos com os nossos "contingentes" militares para a "Guerra do Ultramar".

"Aqui fica, um abraço de conforto, para os muitos amigos da Porcalhota, que foram actores nessas cenas dramáticas e sofreram na alma e no corpo, essa guerra."

9 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Bicho:
Lembro-me de ter ido aí, despedir-me, primeiro do meu padrinho, depois da minha madrinha e primos. Era garota ainda, mas lembro-me de ter ficado tão emocionada, que o meu pai, teve de me tirar dali. Nunca gostei de despedidas.
Só vou ao aeroporto para embarcar, ou buscar alguém. O mesmo me acontece nas estações de combóio.
Quanto aos que partiram, para essa guerra inútil, nunca assisti a nenhum embarque, pois vivia no Porto. Mas foram muitos, os amigos, de quem me despedi um dia e, não voltei a ver. Foram muitos que, partiram quase alegres e voltaram loucos. Não gosto muito de falar nesse tempo. Ainda dói.
Para todos, os que foram e não voltaram, os que voltaram marcados, de alma ou corpo, vai toda a minha solidariedade.
Para ti Bicho, um beijo da
Maria

17/11/08, 20:07  
Anonymous Anónimo disse...

"Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!
Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Eh manipuladores dos guindastes de carga!
Eh amainadores de velas, fogueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convés!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de boné de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles,
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que vistes a Patagónia!
Homens que passastes pela Austrália!
Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!
Que fostes a terra em terras onde nunca descerei!
Que comprastes artigos toscos em colónias à proa de sertões!
E fizestes tudo isso como se não fosse nada!
Como se isso fosse natural,
Como se a vida fosse isso,
Como nem sequer cumprindo um destino!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens do mar actual! homens do mar passado!
Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto!
Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!
Fenícios! Cartagineses! Portugueses atirados de Sagres
Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranquilas povoações africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa,
Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh-eh-eh!
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
A vós todos misturados, entrecruzados,
A vós todos sangrentos, violentos, odiosos, temidos, sagrados,
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Eh-eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh -eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!"

17/11/08, 21:09  
Blogger Kim disse...

Adeus até um dia!
E não voltou!

18/11/08, 00:03  
Blogger O Bicho disse...

Essa "Ode Marítima" é espantosa - eu, que gosto tanto do mar, de barcos, de coisas do mar, confesso que nunca tinha lido.

18/11/08, 11:06  
Anonymous Anónimo disse...

Também não conhecia e gostei. Quem é o autor?
Beijo
Maria

19/11/08, 11:07  
Blogger O Bicho disse...

Autor: um dos heterónimos de Fernado Pessoa.

19/11/08, 11:45  
Anonymous Anónimo disse...

Por essas e outras, é que eu prefiro os heterónimos, ao verdadeiro Pessoa.
Grande poema. Assim gosto.
Maria

19/11/08, 14:40  
Blogger O Bicho disse...

Pois é, amiga, como disse Manuel Alegre:
«Fernado Pessoa, aquele poeta de que ninguém ouviu falar, excepto um velho companheiro de mesa de café do Martinho da Arcada.»

19/11/08, 21:17  
Anonymous Anónimo disse...

Pois é amigo. Tinha de ser Álvaro de Campos, o meu Pessoa perdilecto. Estive mesmo agora a lê-la toda e, ainda não me consegui acalmar. É realmente, maravilhosa, terrivel, assustadora, verdadeira. Como eu gostava de ser assim! Como eu gostava de voar, com estas asas enormes, que nos dão poemas destes!
Maria

20/11/08, 12:07  

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